Fragmentos de mim: Olhos nos olhos

quarta-feira, 28 de maio de 2014

Olhos nos olhos

"O que eu sou hoje é como a unidade no corredor do fim da casa,
Ponto grelado nas paredes...
[...] É estar eu sobrevivente a mim mesmo, como um fósforo frio".
(Fernando Pessoa)

           Encaro a fotografia que, dia após dia, torna-se antiga e assume as cores que o tempo decide, em sua infinita sabedoria e paciência, aplicar à imagem que, um dia, reproduziu fielmente minha aparência. Assim como tudo que independe de minhas vontades, vejo cores com nuances que eu não desejaria, bem como a deformidade da imagem em relação a que agora, encara a outra, inerte e reproduzida como mero borrão, formas mortas e frias, ausente de alma. Seja no papel, seja na tela do computador, pouco a pouco percebo aumentar a distância entre mim e a pessoa da foto.
           É inevitável, irrepreensível o poder, a capacidade de passar, que o tempo possui: ao mesmo tempo em que deforma a forma, ele restabelece a alma na eterna conjuntura da mudança. Deixo de ser eu continuamente, a fim de não me perder em meu próprio eu. Percebo-me no vivo e inconstante paradoxo da existência: cada vez que me perco de mim, entro em sintonia comigo mesma de maneira mais intensa, mais profunda...
           Olho novamente a foto, referência fixa de um tempo que se foi e levou junto de si tudo que eu era, tudo que eu desejava ser, tudo e todos em que eu acreditava, o amor que eu vivia e os sonhos que acalentava... percebo que este contato é o mesmo que encarar, olhos nos olhos, a distância que me separa de mim. A compreensão de para onde me levaram cada uma das minhas vivências e a incerteza de aonde chegarei com as vivências de agora. 
         Porque a vida é esse mistério de se descobrir diferente daquilo que, um dia, se pensou ser; de se perder no infinito de quem se é no presente e de não fazer a menor ideia de quem será no futuro. E a fotografia me diz que, de tudo isso, há uma certeza, apenas: Não serei, amanhã, quem sou hoje. E isso me deixa aliviada, ao mesmo tempo em que me enche de receios...

4 comentários:

  1. Muito bom !!! Verdade sensível do nossos caminhos incertos, dentro de uma relativa certeza do agora ...Jung afirma em outras palavras, que aquilo que ainda não se tornou consciente é "destino"... é o inconsciente se realizando em nós aos poucos. Creio que só o diálogo criativo com o desconhecido imaginário e uma atitude receptiva ao SELF transcendente e aos arquétipos do Bem, nos amenizam um pouco as angústias quanto à existência e seus mistérios maiores no cotidiano.

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    1. Muito obrigada, querida Telma. Vindo de você, sinto-me infinitamente lisonjeada.
      Abraço forte.

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  2. Um texto rico e "melodioso". É verdade, querida! Ao londo do nosso tempo aqui na Terra somos tanto e tantas pessoas que se torna impossível quantificar. Antes essa metamorfose imperceptivelmente diária, do que congelarmos nossas sensações, percepções, ideias... Amei ! Você é linda, inteligente, e escreve como gente grande. Beijos!!!!

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  3. Incrível essa sua capacidade de traduzir minha alma com seus textos - e esse em especial...
    Tava precisando ler algo desse nível...
    Com esse texto, a senhora conseguiu descrever o que eu tava tentando admitir pra mim mas que não conseguia formular em pensamentos e muito menos em palavras.Me aliviou, muito <3
    Lindo texto, meus parabéns!
    Continue sempre assim, escrevendo esses belíssimos textos *-*

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