Fragmentos de mim: março 2016

quarta-feira, 16 de março de 2016

O que há em mim

A pessoa me liga insistentemente e eu me irrito. Os objetos estão espalhados pela casa e isso me tira também, a paciência. Vou precisar atender a pessoa que tanto me irrita, vou perder o dia inteiro para organizar as coisas que estão fora do lugar. Poxa, um dia inteiro - que poderia ser de lazer - perdido com coisas desagradáveis. Nossa, que injusta a vida, não?
Na verdade, não. Afetos e desafetos, perdas e ganhos de tempo e de dinheiro - por que não? - pessoas chatas a me importunarem, tudo isso é fruto do que eu faço a mim. A pessoa chata não estaria me importunando se eu não tivesse, em algum momento, dado a ela espaço para isso. Se há pendências entre nós, novamente a culpa é minha por não ter resolvido isso antes. Igualmente a casa, se está desorganizada é porque não organizei minha rotina e deixei que o caos se estabelecesse.
Os dois simples exemplos são meras ilustrações de como é fácil tendermos a culpar os outros, ou mesmo o mundo por aquilo que nos irrita. Contudo, ao fazermos isso deixamos de admitir nossa parcela de culpa e nos tornamos cruéis, tiranos e irresponsáveis. É difícil admitir a própria incompetência, jogar para os outros é mais cômodo. Fazemos isso o tempo inteiro e nos mais diversos setores da vida.
As projeções que efetuamos com o objetivo de julgar e condenar os outros dizem muito mais sobre nós mesmos do que sobre o outro. Em termos de Brasil, por exemplo, é muito comum as pessoas fazerem uso de expressões jocosas para se referir a alguém de quem não se gosta. Confesso que, não raro, acho engraçado. Contudo, imediatamente me vem à mente o quanto isso é perigoso e cruel. O aluno que sarcasticamente imita a voz do professor(a) argumentando não gostar dele/dela, ou que atrapalha a aula, não está fazendo nada além de demonstrar seu preconceito e desrespeito para com o outro. Não limita ou critica o trabalho do alvo de sua piada, mas mostra quem é.
O amigo que testemunha em favor de outro, mesmo sabendo o quão errado ele está, não está sendo amigo, mas conivente com o erro. Poderia apoiá-lo, mas não reforçar nele uma certeza de impunidade condicionada pela amizade, que deixa de ser amizade e se torna mera barganha de interesses. A mãe que não admite que o filho pode ser cruel está sendo muito mais cruel visto que fomenta o mal em quem ela deveria educar. Antes de apontar o mal no mundo é indispensável que o identifiquemos em nós. E os exemplos poderiam durar para sempre, em todos setores e classes de nossa sociedade, pois somos negligentes em tudo e com todos, a começar por nós mesmos.
Exigimos do outro o que, no fundo, temos a plena certeza de que não faríamos. Então, covardemente, assumimos a posição de vítima, por sermos tímidos, pobres, subordinados... e atribuímos deliberadamente as nossas mazelas a quem tem a coragem de assumir compromissos que jamais assumiríamos. Enchemos a boca para esfregar na cara do mundo o quanto os outros estão errados, mas muitas e muitas vezes sabemos, temos a mais plena certeza, de que o outro, se não é competente, no mínimo, tem a coragem de dar a cara para bater, enquanto nós, jamais teríamos. 
Somos um povo cruel, debochado, irresponsável, parcial. Somos infantis a ponto de competir com os outros, arriscando a adivinhar-lhes os limites quando nem sabemos quais são os nossos. Estamos ainda no tempo dos mocinhos e bandidos e nos esquecemos - mais uma vez o esquecimento - de que todos somos um pouco (ou muito) de cada, que toda realidade possui múltiplas possibilidades de interpretação e que ninguém por melhor ou pior que seja, é totalmente bom ou totalmente mau. 
Que cultivemos nossas qualidades, mas que antes de apontar deliberadamente o crime alheio, que assumamos os nossos. Não precisa ser para os outros, se o fizermos para nós mesmos já está de ótimo tamanho. Que aprendamos a impor limites em nós mesmos e nos outros em nossa vida. De nada adianta xingar os outros pelas costas, reclamar de suas presenças em nosso dia a dia, se não aprendermos a dar um basta. Que critiquemos sem xingar, que aprendamos a perder ,sem a sensação de o mundo acabou, e a não olhar demais para o próprio umbigo, pois o mundo é além de nós e, frequentemente, melhor que nós. 
E claro, que antes de apontar o lixo na casa do outro, que limpemos a nossa.