Fragmentos de mim: fevereiro 2019

sábado, 23 de fevereiro de 2019

Se...

Se fere, abra mão.
Se feri, perdoe-me, se puder...
Se alegra, viva.
Se alegro, faça-me companhia.
Se estiver triste, me chame.
Se eu estiver triste, me ajude a levantar.
Se sentir vontade de chorar, chore.
Se eu chorar, oferte-me seu ombro amigo.
Se sentir amor, permita-se vivê-lo.
Se eu amo, não se ofenda.
Se não pode corresponder ao amor, não sinta culpa.
Se não pode corresponder ao meu amor, não sinta pena.
Se se apaixonar, confesse.
Se eu me apaixonar, me entenda.
Se te abandonar, perdoe.
Mas não me abandone.
Se errar, assuma. 
Se eu errei, me desculpe.
Se incomoda, fale.
Se eu incomodo, não deixe de me alertar.
Não deixe nada nem ninguém sem respostas. A começar por si mesmo. Por medo ou vergonha de facear nossas verdades, muitas vezes nos escondemos nas sombras das ilusões. Mas ilusões são feito nuvens que passam, por mais pesadas que sejam. Quem nos ama verdadeiramente, nos compreende. Alguém te ama verdadeiramente? Qual a sensação? Por quê?
Ainda sobre nuvens, lembre que elas mesmo pesadas e sombrias, passam... Dissipam-se com o tempo. Sempre prevalecerá o Sol, que acima das nuvens e, majestoso, ilumina e aquecea tudo e a todos, aos justos e aos injustos, aos felizes e aos tristes, aos amantes e aos solitários. Ele é para todos nós, se aquece ou se queima, depende de como nos portamos diante dele.
Façamos, portanto, de nossos afetos um jardim, cultivado e regado com carinho e fraternidade. Mas lembremos que cada flor tem uma alma. Não releguemos nossos jardins ao lodo da indiferença e do abandono. Ou mesmo ao sol, pois é fato que ele aquece, mas também queima e mata as plantas que não recebem água. 
Se sentir vontade, fique, mas se quiser embora,  ao menos diga por quê...

domingo, 17 de fevereiro de 2019

Elogios diários

Ela estava não sabia há quantos meses em terapia e pouco falava de si. O assunto era ele, seu relacionamento com um homem mais experiente a quem ela admirava e servia. Sim, servia, porque apenas anos e muitas experiências de vida depois é que ela perceberia o quão abusiva era aquela relação.
De si falava apenas "as pessoas esquecem que as crianças tornam-se a adultas". Ela falava isso enquanto os ecos das gargalhadas de escárnio das primas - consideradas bonitas e decentes - e colegas da escola atormentavam-lhe a mente. Foram muitas as situações de humilhação. As mentiras inventadas sobre ela e que, raramente encontravam obstáculos à aceitação de terceiros. Nessas ocasiões, os castigos eram inevitáveis, fossem eles físicos e, mais comumente, psicológicos. Na verdade, ultrapassavam os limites da indecência e imoralidade.
Para continuar os estudos, precisava ficar abrigada na casa de parentes. A exceção de um membro da família, todos os demais pareciam odiá-la. O que era completamente escondido diante das visitas. No íntimo do sagrado lar de pessoas tão boas e mocinhas tão lindas e dedicadas à religião, um verdadeiro inferno se descortinava à pobre menina sonhadora que não entendia tanto ódio e acreditava realmente que era o grande problema. 
"Você é muito porca!" "Sai, nojenta, não quero me sujar perto de você!" "Seu cabelo é feio e nojento." "Burra, incapaz e preguiçosa. Você nunca vai ser nada porque não presta". Era mimoseada todos os dias. Cenas ocorreram em que a priminha linda e pura amassava panelas, quebrava louças enquanto gritava "para de quebrar as coisas. Você precisa ser mais cuidadosa". E ia correndo simular choro para a mamãe fingindo-se de vítima... Ela não sabia se defender. Compreendia-se realmente suja e nojenta, entendia-se preguiçosa embora passasse fome e trabalhasse na roça desde cedo, sob sol escaldante e o contato com as palhas do milho feria-lhe a pele. 
Roupas não tinha. Eram trapinhos herdados das santas ou feitos com carinho pelas limitados dotes de sua mãe biológica que costurava usando restos de tecidos que conseguia comprar por um valor irrisório. Na casa dos parentes, ela tinha muito medo de esquecer alguma de suas roupas no banheiro depois do banho. Certa vez isso ocorreu e a cena foi dantesca. A matriarca da casa pegou com as pontas dos dedos as peças no cantinho onde haviam sido esquecidas e jogou no chão no meio da casa. Enquanto chutava-as dizia que da próxima vez em que aquela carniça ali fosse encontrada, seria jogada no lixo, que era o local correto.
A menina tinha dez anos de idade apenas.  Apanhou do chão e em silêncio suas roupas... Decidiu que não queria mais estudar. Estudar não era pra ela. Ia ficar na roça mesmo. Semanas depois, os santos parentes chegaram em sua casa e disseram que ela era um caso perdido, não sabia ser mulher, era porca e desajeitada. No entanto, como eram pessoas de bom coração, iam aceitá-la de volta em sua casa. 
Ela, que não havia dito nada em casa, viu-se obrigada a voltar ao inferno onde permaneceu por alguns anos, até ser expulsa no meio da noite.
A menina tornou-se mulher, perdoou os que passaram, mas alguns monstros são difíceis de domar. Possivelmente, domar seja o termo mais apropriado. Há quem alimente os monstros até confundir-se com eles. Ela não quer isso. Ela acredita na transcendência e aposta que um dia possa ser limpa em seus sentimentos e intenções. Porque há sujeiras que a água não lava e há feridas que apesar de sararem, têm memórias. Bem, quanto ao relacionamento abusivo, foi só uma folha que, depois de seca, caiu e não faz falta.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

Amar e fazer novas todas as coisas

A vida nos permite, todos os dias, recomeçar, mas, muitas vezes, por mera teimosia, optamos pela infelicidade. Falo aqui da possibilidade de recomeços, de tornar, por amor a si mesmo e aos outros, novas todas as coisas que nos cercam e nos ajudam a ser quem somos.
Ciclos se fecham para que novos se iniciem e esse processo é inevitável, especialmente se exercitamos o autoamor. Quando aprendemos a nos amar, há muito do que consideramos tolerância que passamos a ver como abuso. Livramo-nos de relações dolorosas e somos levados a fazer uma verdadeira faxina em nossa vida.
Os outros não saberão nossos limites se não deixarmos isso claro. Se alguém nos despreza no que temos de mais precioso, não deve permanecer conosco. Precisamos aceitar que certas rupturas serão inevitáveis e que as dores e decepções serão maiores cada vez que nos recusarmos a deixar ir embora de nossa vida quem não deve permanecer nela.
"É preciso um profundo exercício de desaprender" disse Fernando Pessoa na voz de Alberto Caeiro. Precisamos nos desnudar de muita coisa e concentrar nossa atenção em nós, naquilo que somos, no que queremos, como também no reconhecimento daquilo que, por medida mesmo de segurança e autopreservação, não podemos mais aceitar. 
Nesse processo, vale ouvir a intuição, perceber os sinais e não fazer vista grossa para aquilo que nos machuca. É melhor que machuque no processo de fazer-se livre do que permanecer com algo que massacra e humilha por mero medo da separação.
Nesse processo de descoberta, podemos levar sustos imensos. Nada dói tanto quanto perceber que o melhor que doamos de nós a alguém é visto como sufocante, sujo e desprezível. Nada fere tanto quanto ser preterido(a), mas também ensina muito. Pode parecer injusto, mas o mais limpo e puro que parte de nós pode provocar asco em quem amamos. Palavras de carinho podem constranger quem sente desprezo por nosso carinho, ou, no mínimo, podem ser vistas como desnecessárias e incômodas. 
Podemos juntar nossas pérolas mais preciosas e entregá-las a alguém que vai simplesmente jogá-las no lixo. É preciso, então, ouvir a intuição, poupar nossas pérolas. E não, o problema não são as pérolas, nem nós que as doamos, tampouco quem não as quer receber, mas é um processo normal da vida: é natural apenas. 
Desapegar é a única coisa que resta. Dá prova de amor muito maior quem admira o voo do pássaro do que quem o prende na gaiola. Não há por que se vitimizar, apenas deixar ir, afinal só se doa aquilo que se tem e ninguém é obrigado a receber coisa alguma. Nem nós. A vergonha e o constrangimento do momento vão passar.
É preciso aprender a dizer não. Amar o outro não significa aceitar tudo que vem dele, muito menos seu desprezo. Guardemos nossas pérolas, perdoemos, mas deixemos ir, recusemos o que nos fere. Digamos "Basta!"


Papo sério

"Nossa, você ainda está solteira? Ninguém mais vai te querer! Está velha!" "Mulher que se respeita não transa no primeiro encontro". "Mulher que se valoriza tem pudores na cama". "Mulher boa de cama não serve para casar"... O moralismo castrador travestido de respeito e valores transformou a mulher retraída e infeliz num modelo ideal de santidade. Ora, tudo gira em torno do sexo, da sexualidade e da maneira como se vive e administra isso. 
Pela sexualidade inclui-se ou exclui-se alguém. E no caso da mulher, define o caráter. Tanto homens quanto as próprias mulheres agem assim e, em nome desse agir, as mulheres mutilam-se, castram-se, deixam-se morrer.
Já vi mulher odiando mulher por julgá-la ser mais bonita. (Eu mesma já fiz isso), já vi mulher afastar-se de outra com medo de ser alvo de uma cantada, porque acha que o fato de uma mulher ser homossexual vai fazer com que ela queira pegar todas. Já vi homem desprezar uma mulher apaixonada por ela ser bissexual e ele ter medo de ser trocado por outra ou não confiar no sentimento dela...
Todos vemos todos os dias mulheres sendo alvo de agressões e abusos os mais diversos por não saberem como sair de uma relação abusiva, por medo de ser mais vítima ainda das acusações e perseguições, sejam do companheiro, sejam da sociedade.
Vivemos em uma cultura que nos ensina a competir como se fôssemos inimigas a disputar um espaço de sobrevivência. No entanto, viver mesmo é dar as mãos, apoiar as pessoas, amar as pessoas por serem pessoas, irmãs de espécie, por terem alma, por estarem vivas. É a causa humana que está em jogo. Detestar e competir com uma mulher por ela ser mais bonita não vai agredir a beleza dela, só vai tornar doente a alma de quem o fizer. Há pessoas mais tímidas, outras nem tanto, mas quem somos nós para julgar?
Que é necessário estarmos vigilantes quanto à maledicência - alheia e nossa mesmo - é indiscutível, mas isso não deveria ser motivos de haver guerras entre pessoas que, submetidas a um rótulo, passam a ter invisibilizados e desvalorizados os seus sentimentos. O resultado disso tudo é estarmos cercados de pessoas, mas continuarmos profundamente sozinhos e sozinhas.
É rejeitarmos o amor de alguém porque, em algum momento, aprendemos que a pessoa não merece nosso amor, ou que ela é capaz de suportar qualquer coisa. Não, ninguém é tão forte assim. Eu não preciso competir com a beleza e a juventude de outra, preciso cuidar da minha; Eu não preciso me submeter a uma relação que me faça sofrer só para não estar sozinha; Nenhuma mulher precisa temer a aproximação de uma mulher lésbica, porque, a menos que ela seja louca, não vai sair agarrando qualquer uma por aí. Os homens não precisam temer - nem deveriam desprezar - o amor de uma mulher bissexual, porque, se ela está apaixonada, não tem por que pensar em ninguém mais senão no motivo de sua paixão. E por mais ridículo que seja, é preciso ressaltar que os sentimentos dela podem ser puros.
Falta-nos segurança sobre nós mesmos(as), falta autoamor e enquanto for assim, vai faltar amor ao próximo. Precisamos nos olhar no espelho e declarar amor para nós mesmos(as). Precisamos parar de nos agredir e de permitir que nos façam isso. Há machismo de mais no mundo, há sororidade de menos. E enquanto isso, todas as pessoas e, em especial, nós, as mulheres, continuamos sendo agredidas, violentadas, pelos outros, entre nós mesmas e por nós mesmas. Seria justo isso?