Fragmentos de mim: 2010

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

uns e outros... "sins" e "nãos"

Há momentos de dor,
Há momentos de amor...
Num dia, flores, noutro, espinhos.

Há o canto quente dos vivos,
Há o canto frio dos fantasmas,
Há a leveza da brisa, há o peso das tempestades.

Num dia, pureza de criança,
Noutro, maldade dos homens.
Nas cores da paz, no cinza das guerras...

Há tempo de amor,
Há tempos de dor...
Certeza da ida na esperança da volta.

A natureza canta a vida que chora,
Um coração se aquece de amor numa vida
Que sofre de dor...

Há gritos de vida e choros de morte,
A vida é o canto solitário das multidões...
Mas um dia tudo isso desfar-se-á, meu caro.

A verdade, agora mistério,
Surgirá tão única como a pluralidade do ser,
Das sombras de seus encantos...

Haverá dias de certeza...
Ah, como é tênue a teia que separa
Os braços quentes de amor dos frios e solitários.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

UM TEXTO SEM NOME...

A noite estava escura, mal dava para enxergar o caminho. A cidade deserta só podia ser vista sob a forma de sombras. Da arquitetura de aspecto secular, apenas eram vistas sombras como fantasmas tortos que cresciam e diminuíam, conforme as chamas de algumas fogueiras que existiam dispersas em alguns locais da cidade, praticamente deserta. Os detalhes mais belos e que tanto orgulhavam os habitantes da cidade, a escuridão encarregava-se de omitir numa atmosfera de melancolia ampliada pela presença de uma brisa que, embora leve, trazia em si o frio cortante da morte.

Havia cheiro de sangue no local. Afinal, se havia algo comum naqueles dias era a presença de sangue e corpos jogados pela rua. Enquanto eu caminhava na escuridão quase total, sentia que meus pés pisavam em planície úmida, quando não, molhada. Meus batimentos cardíacos eram pesados, descompassados, quase dolorosos. Pela primeira vez na vida, via-me em completo abandono. Não havia ninguém para me ajudar, ninguém a quem pedir socorro ou abrigo.

Me desespero crescia ao sentir o olhar amedrontado do menino cuja vida dependia exclusivamente da minha. Naquele momento eu queria abraçá-lo e olhá-lo com ternura mas meu temor pelo que estava por vir não me permitia nada além de arrepender-me de tê-lo gerado e condená-lo a tão triste fim. Em meu íntimo, eu pedia perdão a meu filho por ter lhe dado a vida. 

Ele me chamava, apertava-me a mão com sua frágil força em um pedido de ajuda que eu não sabia se poderia lhe conceder. Eu o segurava, conduzindo-o ao caminho que também era meu. Não podia deixá-lo só, era muito perigoso. Também era perigoso levá-lo comigo mas estava decidida a não largá-lo nunca. Para a vida ou para a morte, estaríamos juntos.

Além do mais não havia em quem confiar...

Cheguei ao local combinado e um calafrio terrível tomou conta de todo meu ser ao ouvir as gargalhadas irônicas de meus algozes. Numa tentativa desesperada de salvar nossas vidas, peguei meu pequeno nos braços, agarrei-o com força e comecei a correr, chorando compulsivamente, rogando a Deus que nos salvasse e fazenho-LHE promessas que em meu íntimo eu sabia que não cumpriria, mas que o desespero me obrigava a fazer.

Uma chuva leve começou a cair enquanto eu corria com meus filho nos braços, sem saber para onde ir, enxergando praticamente nada. Senti que um deles me seguia.... Meu Deus, eu tinha sido enganada, jamais tinha tido a intenção de provocar inimigos tão poderosos. Não merecia aquilo...

Consegui encontrar um local para me refugiar no escuro. Acho que se tratava de uma igreja. Mas era inútil ficar escondida. Eu ouvia os passos dele a me procurar, sentia seu sarcasmo. Ele havia me seguido. Eu estava perdida, pois se à noite a escuridão nos protegia, certamente, à luz do dia nos matariam. Só havia uma saída: Eu poderia tentar matá-lo. Ou ele, ou eu! Foi o que pensei e fiquei alguns instantes imaginando uma maneira de por isso em prática. 

Mas seria muito difícil. Eu precisava ser perfeita, pois qualquer erro seria fatal. Então era preciso manter a calma. Eu o mataria não importava como.  Já havia pensado nisso antes e trazia comigo uma faca. Naqueles dias, ninguém que pretendesse voltar vivo se arriscaria sair sem algum objeto mortal. Estava decidido: eu estraçalharia quem tentasse contra mim ou contra o meu pequeno. Quando me senti pronta para ir, cochichei em seu ouvindinho inocente que ele precisava me ajudar, que deveria ficar naquele local muito escuro e protegido, bem encolhidinho, sem fazer nenhum barulho. Até para respirar ele precisava ser cauteloso.

Garanti a ele que eu voltaria logo para buscá-lo, que ele não tivesse medo. Deixei-o lá no cantinho e uma dor quase insuportável atravessou minha alma por não ter certeza de estar falando a verdade. Eu não sabia se voltaria a vê-lo, tocá-lo. Sabia lá o que lhe aconteceria. Tremia só de pensar. Enquanto me despedia dele, vinham-me à mente flashes dos momentos bons vividos ao seu lado. As lembranças da gravidez, do parto natural, do seu primeiro choro... a primeira vez em que segurei-o nos braços... Ah, como eu era feliz! Como era completa ao seu lado...

Deixe-o com um até logo, mas na verdade temia que aquilo fosse um adeus. Tinha praticamente certeza de que se tratava de um adeus. Com a faca em punho , saí e fui em busca de quem me caçava. Não demorou para encontrá-lo. Ele andava com passos leves a minha procura. Enscondi-me na escuridão enquanto contemplava sua silhueta, aguardando o melhor momento e ângulo para atacá-lo. 

Ele parou um pouco de me procurar. Fumou. Tinha também uma faca na mão. Ele bebeu algo forte. Resmungou algo a meu respeito. Era um fanático, impiedoso. Queria me fazer sofrer muito na morte. Como eu o odiava! A partir de então eu não sentia mais medo, sentia nojo, uma revolta, uma vontade de destruí-lo que contrastava totalmente com meus princípios que, dentre outros limites, impunha-me o de jamais derramar o sangue de alguém. 

Mas aquele maldito era diferente. O dele eu precisava derramar até a última gota. Foi após alguns poucos instantes que para mim pareceram eternos que juntei minhas últimas forças e parti para cima dele e furando-lhe o peito e puxando a faca para baixo, rasgando-lhe as carnes o máximo que podia. Seu grito de dor mortal foi uníssono ao meu, de revolta e desespero.

Ao fundo, ouvi o grito de medo de meu filho. Senti meu corpo inteiro estremecer e soltei outro terrível grito que teve o poder de me despertar chorando, trêmula ... sabor de sangue na boca... Eu estava suada, paralisada na cama: tudo não passou de um pesadelo.

sábado, 6 de novembro de 2010

SER DIFERENTE NÃO É NORMAL

               
 Houve dias em que a sociedade brasileira – pobre sociedade de personalidade midiática – passou a repetir e a argumentar acerca da ideia “ser diferente é normal”. A coisa rendeu tanto marketing que em pouco tempo já era enredo de escola de samba. Embora me tratando de um ser anônimo, senti que minha vida se tornara tema de escola de samba e, em plena Sapucaí, cantavam algo que sempre fez parte da minha vida: a diferença.
                O fato é que, atendendo aos meus anseios de uma vida inteira, aos anseios de querer ser vista como normal, encarei o jargão como sendo um grito meu, como se eu mesma cantasse pro mundo que eu sou normal. Porém hoje, um pouco mais amadurecida, em plena vida adulta, quando as primeiras rugas deixam de ser vistas como degradação e a ideia de velhice passa a assumir uma conotação poética, vejo que tudo que pensei na época foi engano.
                Ser diferente nunca foi e nem será normal. Tampouco significa dizer que ser diferente é ser defeituoso. Ser é diferente é ser diferente e pronto. Nada mais, nada menos que isso. Ser diferente é algo que faz parte de mim e que, por si só, nunca foi capaz de me machucar. Na verdade, acredito que se tem algo que hoje não me faria bem, é o fato de ser apenas mais uma em meio à multidão.
                O fato é que ser diferente não é normal porque nunca foi normal a postura das pessoas diante de nossas diferenças. Ser diferente não é normal porque a falta de capacidade de conviver com o heterogêneo, o verdadeira e autenticamente diferente, fere um padrão de perfeição e beleza que, sinceramente, ainda não encontrei ninguém que o obedecesse de forma incontestável.
                Sei que sou diferente e por mais que minha aparência mude, que minha aparência estética mude e eu me torne finalmente normal, a diferença não vai acabar. Serei eternamente diferente porque as marcas dos olhares “diferentes” que recebo até hoje nunca sairão de mim. Ser diferente, na acepção preconceituosa da palavra, é algo que faz e sempre fará parte de minha personalidade porque ajudou a construí-la. Mas também  porque o ser diferente que as pessoas falam, ou se não falam, dizem por meio do olhar, é algo muito mais profundo que qualquer marca física.
Posso garantir com forte conhecimento de causa que Ser diferente só se torna triste por sermos formados por uma cultura com fortes resquícios de perseguição inquisitória. Sim, é isso, pois sei que teria sido jogada à fogueira em praça pública se tivesse nascido naquela época. Se tivesse nascido no período inquisitório teria, logo ao nascer, minha carne e meu sangue queimados no fogo. Como nasci no século XX, sou queimada a vida inteira pelos olhares penalizados ou admirados de um povo que, vivendo mais de meio milênio após a inquisição, não evoluiu quase nada.
                Tenho uma alma livre. Isso é que faz diferença. Não importa como seja o corpo que eu habite, importa o que eu sou, QUEM eu sou.
A oportunidade concreta de ser normal, a concretização de um sonho de uma vida, tem apenas me mostrado que eu jamais o serei. Às vezes chego a questionar se é isso mesmo que eu quero, pois sei que nada no mundo me ensinou tanto quanto a natureza ao permitir que eu fosse diferente. Mais que isso,ver a minha marca clareando, lentamente, é como ver ir embora algo que sempre me fez ser notada, é ver ir embora algo que serviu de motivo para que me fizessem sofrer... mas que de ruim, de fato, nunca teve nada.
É me despedir de mim, do que eu sempre fui e que me preparou para o que eu serei daqui para frente.
Eu precisei ser diferente para descobrir o quanto valho. Eu precisei ser diferente para descobrir que essa falha não é e nunca foi minha. Eu precisei ser diferente para perceber que isso não é normal e que qualquer campanha que diga o contrário é falsa, é mentirosa, porque ser diferente é ser único, perfeito, marcante, sábio e puro.
Eu precisei ser diferente e ter a oportunidade de não o ser mais para perceber que sempre fui perfeita, que não serei mais feliz do que sou hoje e para aprender que estética nenhuma muda a minha alma.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Escapismos


Não me agrada a sensação de necessidade de falar algo que não sei ao certo do que se trata. Nestes momentos, ponho-me a escrever e não consigo expressar nada que considere decente... começo, então, a fatigante jornada de rasgar folhas, deletar arquivos inconclusos no computador. Afinal, sinto-me alheia às ideias e não consigo escrever nada digno de ser lido.
As ideias passam-me desconexas pela mente e não encontro sequer uma palavra capaz de descrever isso. Daí, começo a sentir angústia, náuseas, vontade de gritar, falar um montante de coisas, mas simplesmente, não sei o que falar.
É quando a sensação de sufoco diminui que eu me desligo e começo a andar sem pensar, como se minhas pernas já conhecessem o caminho e eu não precisasse raciocinar, prestar atenção por onde ir... Afinal, é como se no fundo, eu tivesse a certeza de que eu vou chegar e chegar a tempo, o como não me pertence!
Foi em um desses "desligamentos instantâneos pós tortura interior intensa" que, na volta do trabalho para eu me perdi. Vi-me numa rua estranha, estreita, "de repente, não mais que de repente". Senti como se fosse uma criança perdida e tive vontade de chorar, chorar alto. Percebi que havia ido longe demais em minha alucinógena viagem interior.
Mas este episódio passou e dele nada mais consigo lembrar além de ter conseguido chegar em casa meia hora depois do previsto e encharcada de uma bela chuva que caiu no fim da tarde.
O que não me saiu da cabeça durante dias foi a imagem daquele gatinho tão frágil , pequeno e já condenado.
Bem, meu encontro com o gato deu-se dias depois - não sei quantos - do outro em que me perdi... Ao contrário daquele, este estava muito quente e eu voltava para casa andando pela rua completamente alheia ao mundo. Acho que, naquele dia, eu sequer lembrava de minha própria existência. Devia estar pensando em algo mas não sei o que era. O fato é que fui despertada pela triste imagem de um gatinho jogado na calçada.
Seu aspecto magro e cansado denunciava miséria e fome ... era um filhotinho ainda, branquinho... pelo tamanho ainda deveria estar sendo amamentado e não ali. Até hoje não sei (e talvez nunca sabia) se dormia ou se estava morto. O que sei é que deparar-me com sua imagem deplorável trouxe-me num susto - e de súbito - de volta à realidade e acrescentou-me um enorme frio na barriga que, na verdade, denunciava toda a minha compaixão por ele.
Senti vontade de fechar os olhos e não mais vê-lo, mas era inútil. A triste imagem já tinha aderido a minha mente como tatuagem à pele. Tive vontade mesmo de pegá-lo no colo e levar para casa, alimentá-lo. Naquele momento eu queria dar-lhe carinho, como certamente eu o teria feito se ainda fosse uma criança. Mas não fiz nada. Deixei-o lá no mesmo lugar. A hipocrisia impediu-me de fazer algo para salvá-lo.
Como que instantaneamente, lembrei-me de um conto de Clarice Lispector no qual ela diz que não se trata de um ser que precisa ser lembrado de que em tudo há o sangue. Entretanto, ao contrário do que ela escreveu, eu não me sentia no momento do encontro "a mãe de Deus", tampouco a imagem do gato deixou-me revoltada com a divindade. Clarice Lispector perdoando Deus ... e eu? Será que poderia perdoar os homens?
Passei a pensar se merece perdão uma espécie que se sobrepõe às demais e à própria humanidade, bem como a natureza por puros interesses individuais e prazeres efêmeros...
Recomecei a andar voltando para casa. Meus passos, porém, não eram como antes, agora eram pesados e dolorosos. A imagem do pobre gatinho foi uma metáfora que me levou à recordação de todas as misérias que assolam os seres vivos, que causam dor e antecipam mortes. Todas provocadas pela ação do homem...
Passei a sentir - ou lembrar sentindo - que a cada passo meu alguém poderia estar morrendo, sentindo dor, frio ou fome. E quanto mais essas ideias me vinham à cabeça, misturando-se alternadamente à imagem há pouco vista na calçada, mais pesados e dolorosos tornavam-se os meus passos.
Não sei como poderia fazer diferente (talvez salvando o gatinho, se ele ainda estivesse vivo), mas senti que a culpa também era minha e que continuava sendo, pois enquanto eu me perco em conjecturas, a dor continua existindo, muitos estão na miséria: gatos e/ou pessoas continuam sofrendo, continuam morrendo, sem socorro.
Não posso dizer que é tudo fruto da sabedoria de Deus e da maldade dos homens. É muito simples isso e, sinceramente, não acredito que Deus seja culpado. Por outro lado, a um Deus indecifrável, seria muito simplório ser apenas bonzinho aos olhos humanos... mais do que bondade, acredito que ELE também seja dotado de SABEDORIA e JUSTIÇA.... bem, o fato é que não consigo argumentar sobre ELE e sobre sua real influência sobre a Terra e sobre nós.
Afinal, ELE é completo e eu sou apenas complicada, não mais que um gato na calçada...

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Inutilidades...

Há tempos percebi que tentar esconder-se é inútil. A um bom observador, tudo são pistas e nossa personalidade vaza pelos poros invisíveis de nossas palavras.

Inusitada é a forma como descobri isso. Ele me apareceu do nada, tão belo, tão belas as suas palavras e seus gestos que minha vida, desde aquele dia, transformou-se em luz. Ele me preenchia dos mais belos sentimentos e despertava-me para as coisas que eu achava mortas em minha vida. Estar com ele era a minha missão, cultuar a beleza dele era o meu alimento. Eu estava feliz assim.

Não, ele não me amava. Eu sabia disso. Mas eu o amava da forma mais linda, pura e nobre possível e isso me deixava feliz. Feliz e consciente de minha condição de amante não-amada. Interessante, mas através dele percebi que, assim como acontece com o canto dos pássaros, com as pessoas também é igual. Quanto mais triste mais belo. Os sentimentos tristes possuem uma beleza esplêndida, talvez por serem mais verdadeiros e revelarem o que vai em nosso coração.

Ele reclamava das coisas com as quais não concordava e eu me completava com isso, pois as reivindicações dele também eram as minhas. É... mas o tempo passou... ele reclamava de abandono e hoje eu reclamo o abandono dele para comigo. Foi lento que aconteceu... aos poucos ele me foi deixando só, dando-me a chance de fazer dele, as reclamações que ele me fazia de outras pessoas...

Mas eu não reclamo, eu o guardo em mim... ele é sagrado para mim...

Não sei o que sinto. Além de uma saudade imensa daquilo que eu pensei ser a verdade dele, percebo que fez comigo o que já fizeram com ele... [eu também devo estar fazendo o mesmo com alguém] não adianta esconder-se da vida, não adianta esconder-se do que somos, pois a verdade é denunciada por nós mesmos. Se, por um lado, calar-se demonstra não se sabe o quê, por outro, o falar denuncia exatamente aquilo que gostaríamos de esconder.

A inutilidade da palavra está nisso... mostra o que não se quer mostrar. A inutilidade do ser está nisso... amar efemeramente. Mas é inevitável esperar algo diferente, afinal, como o efêmero poderia amar eternamente? A beleza está no ser contraditório. É diante desta contradição que minhas palavras me traduzem, que não projeto um discurso agora... mas que simplesmente solto palavras que me definem e que me mostram por dentro.

UM FRAGMENTO DE MIM... um abandono, uma saudade... INUTILIDADES.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Morena, minha Morena

Como eram doces aquelas noites em que nos sentávamos no alpendre da casinha velha no sítio pobre e conversávamos longamente sobre coisas sem importância. Naqueles doces momentos, o importante era passar o tempo, esperar chegar a hora de dormir e nos prepararmos para esperar a chegada de mais um dia que nada teria de diferente dos demais.
Todos os dias eram sempre iguais... No local tranquilo, a brisa leve acalentava a nossa pele enquanto tu me falavas de tuas lembranças: algumas engraçadas, outras sofridas que eu ouvia atentamente imaginando cada cena e como seria se eu também tivesse vivido aquilo contigo. Enquanto me falavas, pedias a minha opinião, perguntavas se eu concordava com esta ou aquela arguição e eu, que nem sempre sabia o que te dizer, ia concordando com teus pontos de vista. Enquanto me falavas, minha imaginação cruzava o céu no qual admirávamos sempre a beleza incomparável da lua e das estrelas. Admirávamos juntas, a paz que aqueles momentos tinham o dom de nos proporcionar.
Quando te calavas, muitas vezes eu ainda viajava na imaginação e tentava, com ela, alcançar os teus dias. Dias de infância pobre e inocente e dias de fome que também suportaste quando adulta e, sendo mãe, viste faltar o alimento na mesa em virtude da seca dos anos 70. Era com tanta dor que me falavas dos olhares tristes e famintos dos animais que morriam, tão tristes quanto os olhares de teus filhos também famintos naquela época de tristeza e ausência de tudo, menos de amor. Sim, o Amor... pois da tua maneira, tão particular e às vezes incompreendida, amaste como poucos os teus, te resignaste diante da pobreza e da dor, administraste com mãos de aço a tua vida e a daqueles que dependeram de ti, inclusive a mim.
É com saudade que me lembro daqueles dias em que a vida me parecia muito mais simples do que é hoje. Interessante como tudo parecia mais fácil de resolver, como a perfeição da alma humana se fazia por mim compreender através das tuas palavras, do teu olhar simples e alegre quando me vias dançar. É com tristeza que hoje sei que a vida não é tão simples quanto eu imaginava naquela época ... ou então, que eu perdi aquela simplicidade que me fazia relaxar à luz da lua e das estrelas e ao som de tua voz.
De ti herdei muitas coisas, o amor intenso pela vida que te fazia lamentar um dia ter que deixar de viver, a capacidade de me impor diante das dificuldades, a força para lutar quando tudo parece não ter mais jeito e, claro, os traços físicos que, com o passar dos anos cada vez mais se acentuam em mim. Ironia, eu sempre me julguei tão diferente de ti...
Tua despedida desta vida foi tão simples quanto a tua passagem por ela, mas tão dolorosa que nunca me saiu da mente. Naquele dia eu acordei sabendo que te perderia... foste embora, o tempo passou... a minha vida mudou muito e me afastou do sitio, da velha casa cujo alpendre serviu de local para nossas conversas, de tudo. Soube, inclusive, que a velha casa quase não existe mais. Entretanto, no jardim de minhas lembranças tudo permanece igual, leve como a brisa, doce como a lembrança do teu sorriso quando eu chegava, te abraçava e dizia com voz de criança: Morena, minha Morena.