Fragmentos de mim: março 2019

quarta-feira, 6 de março de 2019

Uma prece d'alma

Eu não sou daqui. Sinto-me forasteira em meu próprio berço. Não reconheço como sendo meu o aconchego de minha mãe. Ela o concede por caridade, eu o recebo por necessidade, mas não é meu. Meu mundo é outro... Distante, meu caminho é solitário embora nunca vazio. Os seres que encontro por mim passam apenas. Ninguém fica. São transeuntes em minha vida assim como eu sou no mundo.
Descobri com dores na alma a verdade sobre as despedidas... As mais dolorosas são as que se configuram no silêncio, pois são construídas pouco a pouco, nos pequenos desencontros, nas sintonias que se perdem, nos cristais que se quebram, nas reclamações que cessam, nas palavras e gestos que perdem o sentido e tornam-se desnecessárias, incômodas...
Quando isso acontece, é inútil tentar permanecer e, mesmo querendo ficar, é preciso ir embora ou nos expulsam. São círculos que se fecham no instante em que feridas se abrem... É preciso ir embora, viver a ferida em cada dor e aprender a domimá-la. Caso contrário, ela nos domina.
E o caminho segue, e seguimos carregando o pouco de si que cada um vai deixando em nós, incluindo cada chaga que foi aberta, enquanto enterramos cada ilusão que morre. Sim, porque nenhuma sobrevive... Viver é sagrado e verdadeiro demais para carregar mentiras, por mais belas que sejam. E aos poucos, descobrimos que cada dor foi um presente, porque somos cegos demais para enxergar na alegria, ingratos demais para nos doarmos sem interesses - por mais nobres que pareçam. Somos tolos demais para entender o Amor sem sofrê-lo.
Com um bom tempo de caminhada, percebemos que o caminho só é possível por ser assim, pois ilusões pesam demais para serem levadas adiante; que nos enganamos com nossos afetos e que eles, muitas vezes, se convertem em espinhos que insistem em ferir onde já sangra.... Mas que quando se é verdadeiro com quem se ama, cada cicatriz é uma paisagem, pois não é o espinho em que o outro se converte que nos define, mas o destino que damos a eles...
Sigo forasteira no mundo, sem portar coisa alguma além dos espinhos de hoje...  Sem sensação de pertencimento ao mundo... Sigo leve e em paz, pois não sou daqui, estou passando e aprendendo, seguindo em frente, me doando ainda que muitos se sintam importantes demais para receberem algo de mim... Pode parecer melancólico ou triste... Prefiro chamar de felicidade.


terça-feira, 5 de março de 2019

O voo

Não obstante o corpo de limitadas aptidões, fui dotada de uma alma que voa. Livre feito águia, de asas fortes e olhar embevecido pela vida, meu espírito sempre voou acima de minha realidade, tantas vezes triste, tantas vezes desagradável ou horrível aos olhos da matéria densa, quase sempre ignota às demais criaturas que me cercavam. E assim fiz, e assim fiz-me. 
Voar acima dos precipícios que se me afiguravam medonhos. Voar, muitas vezes, com os olhos fechados, voar para simplesmente sentir a brisa a acariciar-me as faces carentes e solitárias. Nunca estive nos lugares onde vivi e por onde passei, nunca pertenci a nada nem ninguém e nunca tive coisa alguma. 
Voei sempre à procura do impossível carregando na bagagem muitos sentimentos intensos, mas especialmente amor. Talvez, por isso, nada tenha... Ah, o amor... Por ele eu teria criado raízes... Mas talvez eu não quisesse ou não pudesse criar raízes... e do meu mais profundo sentir eu o doei àqueles que se fizeram receptivos e aos que não se fizeram também... Mas doei mesmo assim por perceber que precisavam. É fato que muitos o atiram fora, entendem como sendo pedras as pérolas mais caras do meu coração, mas por ser a força motriz do universo, estou convencida de que o amor não mata nem morre, mas reestrutura-se e redime.
Voei sempre, não pertenço a nada nem nada ou ninguém me pertence e, passados esses anos, minhas asas cansaram. Cessei o voo de fuga de mim mesma e parei diante do caminho. Não posso mais fugir nem ter medo de me ver refletir nas águas de minha consciência, ainda que a imagem seja medonha...
Não posso mais voar, e agora, sinto o calor do chão sob meus pés, contemplo o céu e não sei qual caminho seguir, pois das opções de rota que tenho hoje, a realidade e seus reveses me deixam com medo...
Não posso fugir dos anos que pesam, do silêncio que grita, da solidão que afugenta, da dor das pérolas devolvidas como pedras que me machucam e fazem a alma sangrar.
Não sinto pena de mim, mas queria poder consolar a mim mesma, porque me vejo mulher e menina. Queria poder me pegar no colo em que me consolaria dos choros convulsivos a me dar a certeza de que o mesmo amor que faz sangrar também faz curar, porque em suas multifaces, ele é a única salvação.
Eu queria também ser menos egoísta, queria saber amar sem espera, queria que o silêncio não doesse tanto, que o autoperdão fosse suficiente para seguir sem esses espinhos a ferirem tanto os pés que agora pisam o chão. Eu decidi que vou seguir amando ainda que sem respostas, ainda que com desprezo. Porque entre todos os seres dos mundo, há os que merecem nosso amor e os que precisam dele. Ainda que em total silêncio, ciente da impotência de mudar as coisas, totalmente invisível ou incômoda a quem amo, eu vou seguir sentindo, amando e aprendendo, me redimindo, até além... Até poder voar novamente.