Fragmentos de mim: julho 2010

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Morena, minha Morena

Como eram doces aquelas noites em que nos sentávamos no alpendre da casinha velha no sítio pobre e conversávamos longamente sobre coisas sem importância. Naqueles doces momentos, o importante era passar o tempo, esperar chegar a hora de dormir e nos prepararmos para esperar a chegada de mais um dia que nada teria de diferente dos demais.
Todos os dias eram sempre iguais... No local tranquilo, a brisa leve acalentava a nossa pele enquanto tu me falavas de tuas lembranças: algumas engraçadas, outras sofridas que eu ouvia atentamente imaginando cada cena e como seria se eu também tivesse vivido aquilo contigo. Enquanto me falavas, pedias a minha opinião, perguntavas se eu concordava com esta ou aquela arguição e eu, que nem sempre sabia o que te dizer, ia concordando com teus pontos de vista. Enquanto me falavas, minha imaginação cruzava o céu no qual admirávamos sempre a beleza incomparável da lua e das estrelas. Admirávamos juntas, a paz que aqueles momentos tinham o dom de nos proporcionar.
Quando te calavas, muitas vezes eu ainda viajava na imaginação e tentava, com ela, alcançar os teus dias. Dias de infância pobre e inocente e dias de fome que também suportaste quando adulta e, sendo mãe, viste faltar o alimento na mesa em virtude da seca dos anos 70. Era com tanta dor que me falavas dos olhares tristes e famintos dos animais que morriam, tão tristes quanto os olhares de teus filhos também famintos naquela época de tristeza e ausência de tudo, menos de amor. Sim, o Amor... pois da tua maneira, tão particular e às vezes incompreendida, amaste como poucos os teus, te resignaste diante da pobreza e da dor, administraste com mãos de aço a tua vida e a daqueles que dependeram de ti, inclusive a mim.
É com saudade que me lembro daqueles dias em que a vida me parecia muito mais simples do que é hoje. Interessante como tudo parecia mais fácil de resolver, como a perfeição da alma humana se fazia por mim compreender através das tuas palavras, do teu olhar simples e alegre quando me vias dançar. É com tristeza que hoje sei que a vida não é tão simples quanto eu imaginava naquela época ... ou então, que eu perdi aquela simplicidade que me fazia relaxar à luz da lua e das estrelas e ao som de tua voz.
De ti herdei muitas coisas, o amor intenso pela vida que te fazia lamentar um dia ter que deixar de viver, a capacidade de me impor diante das dificuldades, a força para lutar quando tudo parece não ter mais jeito e, claro, os traços físicos que, com o passar dos anos cada vez mais se acentuam em mim. Ironia, eu sempre me julguei tão diferente de ti...
Tua despedida desta vida foi tão simples quanto a tua passagem por ela, mas tão dolorosa que nunca me saiu da mente. Naquele dia eu acordei sabendo que te perderia... foste embora, o tempo passou... a minha vida mudou muito e me afastou do sitio, da velha casa cujo alpendre serviu de local para nossas conversas, de tudo. Soube, inclusive, que a velha casa quase não existe mais. Entretanto, no jardim de minhas lembranças tudo permanece igual, leve como a brisa, doce como a lembrança do teu sorriso quando eu chegava, te abraçava e dizia com voz de criança: Morena, minha Morena.