Fragmentos de mim: abril 2013

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Um toque de Deus

A vida, seus submundos e encantamentos... Certo dia percebi que isso existe e que é muito mais forte e verdadeiro do que um dia pude imaginar. Eu estava cansada, exausta de um dia inteiro de trabalho e sentia-me consumir pela inconsciência provocada pelo cansaço. Era um frangalho de gente, com olhos onde se cavavam profundas olheiras, pés pesados e um semblante fechado, típico de quem desejar fechar-se pro mundo.
Não que o mundo fosse ruim, mas eu estava em péssimas condições de fazer parte dele. Olhava para as coisas, casas e pessoas ao meu redor e, instantaneamente, via-me consumida por uma indiferença única diante do fato de existir. Quando não, tudo me irritava. Eu estava feito um barco à deriva, que desejava um lugar, um porto onde atracar e esse porto era a minha casa.  Sabia que lá não teria o aconchego de ninguém, além das paredes frias e de uma cama vazia à minha espera.
Fiquei ali, parada, aguardando ansiosamente a vinda do transporte coletivo. Na verdade, não estava ansiosa, não sentia a mínima disposição para sentir alguma coisa que exigisse de mim energia, por menor que fosse. Queria estar em casa, nada mais. Jogar-me ao primeiro cômodo onde pudesse descansar o corpo... Havia anoitecido e, aos poucos, as luzes dos postes começaram a misturar-se com as dos faróis dos carros e das lâmpadas que as pessoas acendiam em suas casas e eu ainda estava ali, aguardando, inerte e totalmente passiva diante da vida, a oportunidade de voltar para casa...
Olhei em direção ao local de onde vinham os ônibus e senti minha visão falhar. Nesse momento, eu não me sentia mais humana. Não sentia mais nada, sequer existia. Não era notada e nem queria, ou sentia, poder em me fazer notar. Na verdade, minha visão ficou turva e, por alguns instantes, não consegui mais distinguir o que eram os faróis dos carros, as luzes dos postes ou das casas. Olhei o céu e percebi-o estrelado e também as estrelas vieram fazer parte desse emaranhado de luzes. Percebi então, que as cores não eram mais cores apenas, elas brilhavam e tinham uma textura delicada, cintilante, podia senti-las como algo macio e delicado. As casas misturavam-se umas às outras e eu senti-me parte de tudo isso.
Eu não estava mais naquele corpo cansado, dolorido e pesado, eu flutuava sobre as casas. Feito mágica, as buzinas e vozes ao meu redor tornaram-se música. Eu era conduzida por todas aquelas luzes a uma dimensão até então desconhecida, e sorria. Não sei se meu rosto cansado sorriu, mas meu espírito, sim. Sorria um sorriso leve e tranquilo, ausente de todos os cansaços do corpo. Não sei por quanto tempo, eu me senti parte do cosmos... Ah, sim, eu era um pouco de Deus e dor alguma me atingia. Voltei a mim não sei quanto tempo depois, já no transporte coletivo, de volta para casa.
De volta ao velho e cansado corpo, senti que ele pesava mais ainda que antes da experiência surreal há pouco experimentada. Uma leve dor de cabeça assomava-se ao meu cansaço, mas a alma estava leve, preparando-se, inconscientemente, para conhecer os pântanos escuros e lamacentos que me aguardariam alguns dias depois.