Fragmentos de mim: novembro 2015

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Cansaço...

           Cansaço é a palavra. Impossível iniciar o texto com outra que não fosse essa. Mas cansaço de quê? De tudo. E de tudo um pouco. Já dizia o poeta que quem dividiu o ano em doze partes, sabia bem o que estava fazendo, pois doze meses é mais que suficiente para cansar qualquer um. E de alguma maneira, a gente precisa dessa ilusão de renovação que um ano novo traz. 
           É verdade, eu concordo... mas concordo também que há cansaços que a virada do ano não leva, que uma boa noite de sono não cura, que um banho longo não lava. Nada limpa uma alma pesada, nada sara uma ferida cujo sangue está dentro, mas tão dentro do próprio eu que a gente chega a sentir que não é dor... há dores eternas, há cansaços eternos... eternos até que um grito de coragem seja capaz de nos tirar de nossa aparente zona de conforto. 
            Digo aparente porque não há conforto na dor nem na solidão. Ninguém pode ser feliz carregando pesos dos quais gostaria de se livrar. Ninguém pode estar leve protelando decisões que precisa tomar, reviravoltas que necessita provocar. E quanto mais se protela, mais infeliz e cansado se torna. Contudo é preciso muita coragem... as prisões do mundo nos tornam o profissional ideal, a mulher ideal, a mãe e a esposa ideal, o marido dos sonhos e por aí vai... e assim a gente vai levando, conquistando tudo que qualquer um gostaria de conquistar e sendo tudo que qualquer um gostaria de ser... menos o que gostaríamos de ser e ter, de fato.
               E por medo de dizer "não", a gente diz "sim" e se cansa. E por medo de abrir as portas da vida e deixar ir, a gente prende a própria alma em ilusões que apodrecem dentro de nós e nos deixam sem cor. E a gente protela, protela... até perder. Perder um grande Amor por medo de arriscar ou porque para tê-lo, seria necessário suportar muitas perdas, até mesmo a de si mesmo, por admitir não ser o que pensava... e a gente vai morrendo de cansaço, carregando o peso de não dizer "Ah, como eu te amo", paralelamente ao terror de carregar o que pesa, mas que parece conveniente. 
             Há momentos de descansar, então que se descanse. Sem esperar o ano novo, pois pode ser antes disso. Sem esperar deixar de respirar, pois se morre da pior morte cada vez que se nega ser o que alma grita. Sem esperar deixar de existir para poder dizer "Puxa, como eu te amo... não há um dia em que não sinta a sua falta". Bem, pode ser que a resposta seja o silêncio, mas o descanso da liberdade do falar vale a pena. Afinal, o melhor do Amor é amar. A necessidade de ter fica a cargo de nossas fraquezas.

domingo, 1 de novembro de 2015

Eu não vou sujar meu salto!

A frase saiu despretensiosa em meio um a turbilhão de reflexões. Mas saiu. E em tom arrogante. Logo eu, que detesto frescura, agi como uma fresca completa. Chegou a ser engraçado e agora, soa-me interessante a quantidade infinita de sentidos que ela representa para mim. Hoje, lembrando da frase, fui automaticamente arrastada ao passado. Um passado remoto se eu considerar a verdadeira Odisseia que tem sido minha existência nos últimos quase 20 anos.

Nessa época, eu nem sabia usar saltos, na verdade. Fui uma adolescente estranha e entre as coisas que mais me deixava desconfortável, era abandonar meu jeans, camiseta e tênis, para trocá-los por um salto. Sentia-me uma pata. Bem, mas a recordação do passado, por mais que pareça absurda, de alguma forma, na minha cabeça, se relaciona a não querer me sujar. Ah, mas eu já me sujei muitas e muitas vezes nessa vida. A recordação de agora envolve minha avó.

Ela havia ficado viúva e, desde então, morava sozinha. Eu me esforçava para ficar com ela o máximo possível. Era uma pessoa de personalidade forte, não admitia as próprias fraquezas, nem as fragilidades a que todo ser humano está sujeito em algum momento da vida. É certo que não teve uma vida fácil, que muitas vezes havia se sujado na vida: na roça, para sustentar os filhos a custo de muito trabalho pesado... A vida havia feito dela uma rocha e estava fazendo o mesmo comigo, já fazia um bom tempo. Bem, mas o fato é que naquela manhã ela não havia acordado bem e, a custo, admitiu que não conseguia se levantar. Sentiu necessidade de ir ao banheiro e me chamou. Não deu tempo e aquela mulher forte havia "se sujado"...

Fiquei sem saber o que fazer. Eu tinha nojo, mas ao mesmo tempo, tinha o dever moral e, acima de tudo, humano, de abraçá-la, consolá-la e fazer o possível para que não se envergonhasse tanto, pois eu haveria de limpar tudo, dar-lhe banho e deixá-la o mais confortável possível. Era muito difícil para mim. Já havia me sujado muitas vezes na vida, mas naquele dia era diferente. Era a dignidade dela que me reclamava atenção e eu não pensei duas vezes. Abracei-a e não sei com que força e inteligência, em poucos minutos, tudo estava o mais confortável e limpo possível para ela. No mais, restava-me que minha mãe se preocupasse e viesse nos ver, já que não tínhamos os recursos que temos hoje...

Sujei-me, mas de uma sujeira que a água lavou depois de alguns minutos. Naquele momento, o que eu precisava manter limpa era a minha dignidade e a dignidade dela, ainda envergonhada e fragilizada. Bem, eu já havia me sujado outras vezes, de terra, na roça, cavando a terra com as mãos para enterrar ali uma muda numa plantação de fumo, por exemplo. Aquilo já havia me enchido de vergonha, muitas e muitas vezes, na escola. Eu tinha mãos feias, sujas, encardidas. Era xucra demais, mas diante de meus próprios olhos, eu nunca tive vergonha de ser eu e, de alguma maneira, eu sabia que não seria daquele jeito para sempre. Eu sabia que as roupas velhas e puídas, as mãos encardidas e o andar deselegante dariam lugar ao que o meu espírito sempre foi: exigente e de gostos refinados.

A verdade também é que eu nem sabia o que significa dignidade. Isso eu só vim descobrir depois de muitos outros acontecimentos. Minha avó ainda ficou conosco por mais uns cinco anos. Nos ensinou muito e aprendeu muito. Ainda hoje sonho com ela, sempre na casa antiga, no alpendre em que ficávamos conversando por horas... naquela época eu não estudava, não tinha internet, nem celular. Era sempre eu, ela e os livros, que me permitiam sair dali e mergulhar nas histórias de outros países, experimentar as sensações de ter uma vida diferente, de observar as coisas e de não entender tantas outras, que só vim entender há pouco tempo...

Mas... o que tem tudo isso a ver com o salto? Bem, não sujar o salto para mim significa muitas coisas, dentre elas, "você não sabe o que vivi para estar hoje sobre um salto, não me macule, pois eu não permito". O salto sou eu, é minha dignidade que eu não deixei sujar quando abracei tantas e tantas vezes a minha avó, o meu irmão, os meus animais. O salto sou eu quando, mesmo aos olhos alheios estando para trás, ignorada ou humilhada, percebo que só eu tenho o poder de decidir se as atitudes dos outros me magoarão ou não. O salto sou eu, quando digo: Chega!! Eu não permito que maculem a minha alma, porque até subir num salto eu tive que andar muitos quilômetros a pé e me sujar muito na vida.

Então, é isso, eu não vou sujar meu salto, mesmo quando estiver descalça, calada ou cabisbaixa, porque só eu conheço a minha história. Não se trata de vitimismo hipócrita, mas de decência. Até porque não tenho postura de vítima e acho que se tem algo bom nessa vida é não ter medo de se sujar, de cair na chuva, andar a pé, chafurdar na merda se for o caso. Se a causa valer a pena, a água lava o resto. Só não lava caráter sujo, nem limpa consciência pesada.