"O que eu sou hoje é como a unidade no corredor do fim da casa,
Ponto grelado nas paredes...[...] É estar eu sobrevivente a mim mesmo, como um fósforo frio".
(Fernando Pessoa)
Encaro a fotografia que, dia após dia, torna-se antiga e assume as cores que o tempo decide, em sua infinita sabedoria e paciência, aplicar à imagem que, um dia, reproduziu fielmente minha aparência. Assim como tudo que independe de minhas vontades, vejo cores com nuances que eu não desejaria, bem como a deformidade da imagem em relação a que agora, encara a outra, inerte e reproduzida como mero borrão, formas mortas e frias, ausente de alma. Seja no papel, seja na tela do computador, pouco a pouco percebo aumentar a distância entre mim e a pessoa da foto.
É inevitável, irrepreensível o poder, a capacidade de passar, que o tempo possui: ao mesmo tempo em que deforma a forma, ele restabelece a alma na eterna conjuntura da mudança. Deixo de ser eu continuamente, a fim de não me perder em meu próprio eu. Percebo-me no vivo e inconstante paradoxo da existência: cada vez que me perco de mim, entro em sintonia comigo mesma de maneira mais intensa, mais profunda...
Olho novamente a foto, referência fixa de um tempo que se foi e levou junto de si tudo que eu era, tudo que eu desejava ser, tudo e todos em que eu acreditava, o amor que eu vivia e os sonhos que acalentava... percebo que este contato é o mesmo que encarar, olhos nos olhos, a distância que me separa de mim. A compreensão de para onde me levaram cada uma das minhas vivências e a incerteza de aonde chegarei com as vivências de agora.
Porque a vida é esse mistério de se descobrir diferente daquilo que, um dia, se pensou ser; de se perder no infinito de quem se é no presente e de não fazer a menor ideia de quem será no futuro. E a fotografia me diz que, de tudo isso, há uma certeza, apenas: Não serei, amanhã, quem sou hoje. E isso me deixa aliviada, ao mesmo tempo em que me enche de receios...