Fragmentos de mim: Desculpe, eu existo!

terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Desculpe, eu existo!

As pessoas podem ser muito cruéis e muitas delas o serão, no mais das vezes, contra aqueles e aquelas que não lhes oferecem risco de se defender. Talvez por isso, idosos, crianças, animais e pessoas com algum tipo de limitação tendem a ser tão vítimas dos variados tipos de violência. A história de hoje é de uma menina, hoje mulher, mas cujas memórias fazem-na sentir que a criança do passado ainda habita em si. Provavelmente, ela é só mais uma em meio de milhares de outros seres que passaram e passam por coisa parecida. 
Palavras... Palavras curam, certa vez ela ouviu dizer. Mas palavras também matam, adoecem. Palavas, em suma, têm poder. Ao longo de indefinidos anos, uma ideia ganhou corpo e vida própria no imaginário de nossa personagem central. "Crianças não esquecem. Mesmo depois que se torna adulta, o que uma pessoa ouviu na infância vai acompanhá-la", salvando-a, condenando-a, salvando-a mesmo quando a intenção de quem disse o que foi dito era condená-la. O fato é que se as palavras têm poder, a memória guarda as palavras e faz com que germinem algo que talvez a pessoa não perceba ou não saiba controlar.
E foi assim, sem perceber, que volta e meia ela repetia: "As pessoas deveriam ter mais cuidado com o dizem a uma criança. As pessoas esquecem que as crianças crescem, que se tornam adultas." Um belo dia, a terapeuta perguntou por que ela repetia tanto essa frase. "Oh, que frase?" Ela nem percebia... Dando-se conta, finalmente ela se permitiu chorar, chorar muito, sem dizer mais nada.
"Ah, você foi fruto de um erro, não foi planejada." "Se tivesse morrido depois de batizada, não faria a menor falta". "Se sua mãe tivesse morrido no parto, eu nunca te criaria". "Coitada, nunca vai ser bonita como as outras da família". É certo que quem proferiu essas frases não tinha noção do poder delas e é bem provável que não tenham feito por maldade consciente. Houve coisas piores. Sílabas, gestos, ações, que passariam totalmente imperceptíveis e, portanto, não teriam como ser denunciadas a quem quer que fosse.
O fato é que desde cedo, ela aprendeu que sua existência incomodava, que seu cabelo era feio, que seu corpo era horrível e que sua existência era um erro. Por mais que trabalhasse, era sempre a preguiçosa, o que ela fazia nunca estava bem feito. Sempre a criticavam, sempre a denegriam. Desde cedo, percebeu que ser imperceptível era a única maneira de incomodar menos. Os risos jocosos das primas bonitinhas e sempre elogiadas pelos adultos, bem como os próprios adultos, na maneira como a tratavam, faziam-na perceber que era incômodo tê-la por perto. 
Criou, então, um mundo paralelo, onde não incomodava ninguém, onde era aceita. Desenvolveu o hábito de olhar-se no espelho e, por diversas vezes, afogava-se no próprio olhar numa procura desesperada por si mesma. Na verdade, ela não se achava feia nem errada a sua existência e, no intuito de não perder o pouco de si mesma que volta e meia identificava como belo, desligava-se dos outros, e assim, aprendeu a ser só. Percebeu, não sabe exatamente quando, que tinha habilidades que aos outros faltavam e que isso, muitas vezes, fazia com que a tratassem bem. Contudo, notou, também, que o faziam por puro interesse. 
Certa vez, ela, ainda criança, não sofreou a revolta e disse a uma pessoa muito próxima: "Mude ou você será muito infeliz! Você não gosta de mim, só me trata bem porque sabe que vai ter vantagem. Você é sempre assim, só faz um favor quando pode receber dois em troca". Falou isso com medo de apanhar, afinal estava sendo muito petulante, mas o que viu foram muitas lágrimas da outra pessoa, que se dizia injustiçada. Ela não se comoveu e, aos poucos, desenvolveu certa agressividade. 
Muitos anos se passaram. Da agressividade de antes, mal restam as sombras. Numa mesma vida, ela já morreu e nasceu muitas vezes e sabe que a cada vez está um pouquinho diferente. Ela ama com o mais profundo da alma, tem descoberto tantas formas bonitas de amar e sabe que o Universo, de alguma maneira ou de muitas, conspira para que se torne alguém melhor. Mas algo triste sobrevive: Ela nunca se livrou do medo de incomodar aqueles que habitam sua alma. Ainda vive o misto de se esconder e se mostrar, de se calar quando queria se revelar ou de se arrepender quando se revela. É isso, algumas coisas tatuadas na alma de uma criança nunce se perdem.

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