Fragmentos de mim: Elogios diários

domingo, 17 de fevereiro de 2019

Elogios diários

Ela estava não sabia há quantos meses em terapia e pouco falava de si. O assunto era ele, seu relacionamento com um homem mais experiente a quem ela admirava e servia. Sim, servia, porque apenas anos e muitas experiências de vida depois é que ela perceberia o quão abusiva era aquela relação.
De si falava apenas "as pessoas esquecem que as crianças tornam-se a adultas". Ela falava isso enquanto os ecos das gargalhadas de escárnio das primas - consideradas bonitas e decentes - e colegas da escola atormentavam-lhe a mente. Foram muitas as situações de humilhação. As mentiras inventadas sobre ela e que, raramente encontravam obstáculos à aceitação de terceiros. Nessas ocasiões, os castigos eram inevitáveis, fossem eles físicos e, mais comumente, psicológicos. Na verdade, ultrapassavam os limites da indecência e imoralidade.
Para continuar os estudos, precisava ficar abrigada na casa de parentes. A exceção de um membro da família, todos os demais pareciam odiá-la. O que era completamente escondido diante das visitas. No íntimo do sagrado lar de pessoas tão boas e mocinhas tão lindas e dedicadas à religião, um verdadeiro inferno se descortinava à pobre menina sonhadora que não entendia tanto ódio e acreditava realmente que era o grande problema. 
"Você é muito porca!" "Sai, nojenta, não quero me sujar perto de você!" "Seu cabelo é feio e nojento." "Burra, incapaz e preguiçosa. Você nunca vai ser nada porque não presta". Era mimoseada todos os dias. Cenas ocorreram em que a priminha linda e pura amassava panelas, quebrava louças enquanto gritava "para de quebrar as coisas. Você precisa ser mais cuidadosa". E ia correndo simular choro para a mamãe fingindo-se de vítima... Ela não sabia se defender. Compreendia-se realmente suja e nojenta, entendia-se preguiçosa embora passasse fome e trabalhasse na roça desde cedo, sob sol escaldante e o contato com as palhas do milho feria-lhe a pele. 
Roupas não tinha. Eram trapinhos herdados das santas ou feitos com carinho pelas limitados dotes de sua mãe biológica que costurava usando restos de tecidos que conseguia comprar por um valor irrisório. Na casa dos parentes, ela tinha muito medo de esquecer alguma de suas roupas no banheiro depois do banho. Certa vez isso ocorreu e a cena foi dantesca. A matriarca da casa pegou com as pontas dos dedos as peças no cantinho onde haviam sido esquecidas e jogou no chão no meio da casa. Enquanto chutava-as dizia que da próxima vez em que aquela carniça ali fosse encontrada, seria jogada no lixo, que era o local correto.
A menina tinha dez anos de idade apenas.  Apanhou do chão e em silêncio suas roupas... Decidiu que não queria mais estudar. Estudar não era pra ela. Ia ficar na roça mesmo. Semanas depois, os santos parentes chegaram em sua casa e disseram que ela era um caso perdido, não sabia ser mulher, era porca e desajeitada. No entanto, como eram pessoas de bom coração, iam aceitá-la de volta em sua casa. 
Ela, que não havia dito nada em casa, viu-se obrigada a voltar ao inferno onde permaneceu por alguns anos, até ser expulsa no meio da noite.
A menina tornou-se mulher, perdoou os que passaram, mas alguns monstros são difíceis de domar. Possivelmente, domar seja o termo mais apropriado. Há quem alimente os monstros até confundir-se com eles. Ela não quer isso. Ela acredita na transcendência e aposta que um dia possa ser limpa em seus sentimentos e intenções. Porque há sujeiras que a água não lava e há feridas que apesar de sararem, têm memórias. Bem, quanto ao relacionamento abusivo, foi só uma folha que, depois de seca, caiu e não faz falta.

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