Fragmentos de mim: UM TEXTO SEM NOME...

terça-feira, 16 de novembro de 2010

UM TEXTO SEM NOME...

A noite estava escura, mal dava para enxergar o caminho. A cidade deserta só podia ser vista sob a forma de sombras. Da arquitetura de aspecto secular, apenas eram vistas sombras como fantasmas tortos que cresciam e diminuíam, conforme as chamas de algumas fogueiras que existiam dispersas em alguns locais da cidade, praticamente deserta. Os detalhes mais belos e que tanto orgulhavam os habitantes da cidade, a escuridão encarregava-se de omitir numa atmosfera de melancolia ampliada pela presença de uma brisa que, embora leve, trazia em si o frio cortante da morte.

Havia cheiro de sangue no local. Afinal, se havia algo comum naqueles dias era a presença de sangue e corpos jogados pela rua. Enquanto eu caminhava na escuridão quase total, sentia que meus pés pisavam em planície úmida, quando não, molhada. Meus batimentos cardíacos eram pesados, descompassados, quase dolorosos. Pela primeira vez na vida, via-me em completo abandono. Não havia ninguém para me ajudar, ninguém a quem pedir socorro ou abrigo.

Me desespero crescia ao sentir o olhar amedrontado do menino cuja vida dependia exclusivamente da minha. Naquele momento eu queria abraçá-lo e olhá-lo com ternura mas meu temor pelo que estava por vir não me permitia nada além de arrepender-me de tê-lo gerado e condená-lo a tão triste fim. Em meu íntimo, eu pedia perdão a meu filho por ter lhe dado a vida. 

Ele me chamava, apertava-me a mão com sua frágil força em um pedido de ajuda que eu não sabia se poderia lhe conceder. Eu o segurava, conduzindo-o ao caminho que também era meu. Não podia deixá-lo só, era muito perigoso. Também era perigoso levá-lo comigo mas estava decidida a não largá-lo nunca. Para a vida ou para a morte, estaríamos juntos.

Além do mais não havia em quem confiar...

Cheguei ao local combinado e um calafrio terrível tomou conta de todo meu ser ao ouvir as gargalhadas irônicas de meus algozes. Numa tentativa desesperada de salvar nossas vidas, peguei meu pequeno nos braços, agarrei-o com força e comecei a correr, chorando compulsivamente, rogando a Deus que nos salvasse e fazenho-LHE promessas que em meu íntimo eu sabia que não cumpriria, mas que o desespero me obrigava a fazer.

Uma chuva leve começou a cair enquanto eu corria com meus filho nos braços, sem saber para onde ir, enxergando praticamente nada. Senti que um deles me seguia.... Meu Deus, eu tinha sido enganada, jamais tinha tido a intenção de provocar inimigos tão poderosos. Não merecia aquilo...

Consegui encontrar um local para me refugiar no escuro. Acho que se tratava de uma igreja. Mas era inútil ficar escondida. Eu ouvia os passos dele a me procurar, sentia seu sarcasmo. Ele havia me seguido. Eu estava perdida, pois se à noite a escuridão nos protegia, certamente, à luz do dia nos matariam. Só havia uma saída: Eu poderia tentar matá-lo. Ou ele, ou eu! Foi o que pensei e fiquei alguns instantes imaginando uma maneira de por isso em prática. 

Mas seria muito difícil. Eu precisava ser perfeita, pois qualquer erro seria fatal. Então era preciso manter a calma. Eu o mataria não importava como.  Já havia pensado nisso antes e trazia comigo uma faca. Naqueles dias, ninguém que pretendesse voltar vivo se arriscaria sair sem algum objeto mortal. Estava decidido: eu estraçalharia quem tentasse contra mim ou contra o meu pequeno. Quando me senti pronta para ir, cochichei em seu ouvindinho inocente que ele precisava me ajudar, que deveria ficar naquele local muito escuro e protegido, bem encolhidinho, sem fazer nenhum barulho. Até para respirar ele precisava ser cauteloso.

Garanti a ele que eu voltaria logo para buscá-lo, que ele não tivesse medo. Deixei-o lá no cantinho e uma dor quase insuportável atravessou minha alma por não ter certeza de estar falando a verdade. Eu não sabia se voltaria a vê-lo, tocá-lo. Sabia lá o que lhe aconteceria. Tremia só de pensar. Enquanto me despedia dele, vinham-me à mente flashes dos momentos bons vividos ao seu lado. As lembranças da gravidez, do parto natural, do seu primeiro choro... a primeira vez em que segurei-o nos braços... Ah, como eu era feliz! Como era completa ao seu lado...

Deixe-o com um até logo, mas na verdade temia que aquilo fosse um adeus. Tinha praticamente certeza de que se tratava de um adeus. Com a faca em punho , saí e fui em busca de quem me caçava. Não demorou para encontrá-lo. Ele andava com passos leves a minha procura. Enscondi-me na escuridão enquanto contemplava sua silhueta, aguardando o melhor momento e ângulo para atacá-lo. 

Ele parou um pouco de me procurar. Fumou. Tinha também uma faca na mão. Ele bebeu algo forte. Resmungou algo a meu respeito. Era um fanático, impiedoso. Queria me fazer sofrer muito na morte. Como eu o odiava! A partir de então eu não sentia mais medo, sentia nojo, uma revolta, uma vontade de destruí-lo que contrastava totalmente com meus princípios que, dentre outros limites, impunha-me o de jamais derramar o sangue de alguém. 

Mas aquele maldito era diferente. O dele eu precisava derramar até a última gota. Foi após alguns poucos instantes que para mim pareceram eternos que juntei minhas últimas forças e parti para cima dele e furando-lhe o peito e puxando a faca para baixo, rasgando-lhe as carnes o máximo que podia. Seu grito de dor mortal foi uníssono ao meu, de revolta e desespero.

Ao fundo, ouvi o grito de medo de meu filho. Senti meu corpo inteiro estremecer e soltei outro terrível grito que teve o poder de me despertar chorando, trêmula ... sabor de sangue na boca... Eu estava suada, paralisada na cama: tudo não passou de um pesadelo.

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