Fragmentos de mim: Escapismos

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Escapismos


Não me agrada a sensação de necessidade de falar algo que não sei ao certo do que se trata. Nestes momentos, ponho-me a escrever e não consigo expressar nada que considere decente... começo, então, a fatigante jornada de rasgar folhas, deletar arquivos inconclusos no computador. Afinal, sinto-me alheia às ideias e não consigo escrever nada digno de ser lido.
As ideias passam-me desconexas pela mente e não encontro sequer uma palavra capaz de descrever isso. Daí, começo a sentir angústia, náuseas, vontade de gritar, falar um montante de coisas, mas simplesmente, não sei o que falar.
É quando a sensação de sufoco diminui que eu me desligo e começo a andar sem pensar, como se minhas pernas já conhecessem o caminho e eu não precisasse raciocinar, prestar atenção por onde ir... Afinal, é como se no fundo, eu tivesse a certeza de que eu vou chegar e chegar a tempo, o como não me pertence!
Foi em um desses "desligamentos instantâneos pós tortura interior intensa" que, na volta do trabalho para eu me perdi. Vi-me numa rua estranha, estreita, "de repente, não mais que de repente". Senti como se fosse uma criança perdida e tive vontade de chorar, chorar alto. Percebi que havia ido longe demais em minha alucinógena viagem interior.
Mas este episódio passou e dele nada mais consigo lembrar além de ter conseguido chegar em casa meia hora depois do previsto e encharcada de uma bela chuva que caiu no fim da tarde.
O que não me saiu da cabeça durante dias foi a imagem daquele gatinho tão frágil , pequeno e já condenado.
Bem, meu encontro com o gato deu-se dias depois - não sei quantos - do outro em que me perdi... Ao contrário daquele, este estava muito quente e eu voltava para casa andando pela rua completamente alheia ao mundo. Acho que, naquele dia, eu sequer lembrava de minha própria existência. Devia estar pensando em algo mas não sei o que era. O fato é que fui despertada pela triste imagem de um gatinho jogado na calçada.
Seu aspecto magro e cansado denunciava miséria e fome ... era um filhotinho ainda, branquinho... pelo tamanho ainda deveria estar sendo amamentado e não ali. Até hoje não sei (e talvez nunca sabia) se dormia ou se estava morto. O que sei é que deparar-me com sua imagem deplorável trouxe-me num susto - e de súbito - de volta à realidade e acrescentou-me um enorme frio na barriga que, na verdade, denunciava toda a minha compaixão por ele.
Senti vontade de fechar os olhos e não mais vê-lo, mas era inútil. A triste imagem já tinha aderido a minha mente como tatuagem à pele. Tive vontade mesmo de pegá-lo no colo e levar para casa, alimentá-lo. Naquele momento eu queria dar-lhe carinho, como certamente eu o teria feito se ainda fosse uma criança. Mas não fiz nada. Deixei-o lá no mesmo lugar. A hipocrisia impediu-me de fazer algo para salvá-lo.
Como que instantaneamente, lembrei-me de um conto de Clarice Lispector no qual ela diz que não se trata de um ser que precisa ser lembrado de que em tudo há o sangue. Entretanto, ao contrário do que ela escreveu, eu não me sentia no momento do encontro "a mãe de Deus", tampouco a imagem do gato deixou-me revoltada com a divindade. Clarice Lispector perdoando Deus ... e eu? Será que poderia perdoar os homens?
Passei a pensar se merece perdão uma espécie que se sobrepõe às demais e à própria humanidade, bem como a natureza por puros interesses individuais e prazeres efêmeros...
Recomecei a andar voltando para casa. Meus passos, porém, não eram como antes, agora eram pesados e dolorosos. A imagem do pobre gatinho foi uma metáfora que me levou à recordação de todas as misérias que assolam os seres vivos, que causam dor e antecipam mortes. Todas provocadas pela ação do homem...
Passei a sentir - ou lembrar sentindo - que a cada passo meu alguém poderia estar morrendo, sentindo dor, frio ou fome. E quanto mais essas ideias me vinham à cabeça, misturando-se alternadamente à imagem há pouco vista na calçada, mais pesados e dolorosos tornavam-se os meus passos.
Não sei como poderia fazer diferente (talvez salvando o gatinho, se ele ainda estivesse vivo), mas senti que a culpa também era minha e que continuava sendo, pois enquanto eu me perco em conjecturas, a dor continua existindo, muitos estão na miséria: gatos e/ou pessoas continuam sofrendo, continuam morrendo, sem socorro.
Não posso dizer que é tudo fruto da sabedoria de Deus e da maldade dos homens. É muito simples isso e, sinceramente, não acredito que Deus seja culpado. Por outro lado, a um Deus indecifrável, seria muito simplório ser apenas bonzinho aos olhos humanos... mais do que bondade, acredito que ELE também seja dotado de SABEDORIA e JUSTIÇA.... bem, o fato é que não consigo argumentar sobre ELE e sobre sua real influência sobre a Terra e sobre nós.
Afinal, ELE é completo e eu sou apenas complicada, não mais que um gato na calçada...

4 comentários:

  1. eita muié pra escrever beem!
    saudades de tuuu!
    um xêro imensOOOOOO!!!

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  2. "...acredito que ELE também seja dotado de SABEDORIA e JUSTIÇA..." certíssima!!!
    Otiimo post! =)

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  3. Não sabia do seu dom de escrever. Bom texto, colocações perfeitas. Parabéns!!!!

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  4. "Enquanto eu me perco em conjecturas, a dor continua existindo, muitos estão na miséria"

    A profundidade das suas palavras me despertaram para algo que a pouco discutia comigo mesma. Minhas conjecturas sobre a vida são cada dia maiores e mais complexa, e por me dedicar demais a elas, permito que pessoas passem por mim sem serem devidamente amadas, contrariando os princípios que mais me são caros...
    Só não comento todos os versos do texto para não ser cansativa, mas o amei, minha mente passeou desde as mais belas às mais profundas' lembranças... Nem imagino os lugares e momentos que ela passeará quando tiver o prazer de ler seu livro!
    Quero seu autógrafo no meu exemplar, viu !!!

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