Fragmentos de mim: O voo

terça-feira, 5 de março de 2019

O voo

Não obstante o corpo de limitadas aptidões, fui dotada de uma alma que voa. Livre feito águia, de asas fortes e olhar embevecido pela vida, meu espírito sempre voou acima de minha realidade, tantas vezes triste, tantas vezes desagradável ou horrível aos olhos da matéria densa, quase sempre ignota às demais criaturas que me cercavam. E assim fiz, e assim fiz-me. 
Voar acima dos precipícios que se me afiguravam medonhos. Voar, muitas vezes, com os olhos fechados, voar para simplesmente sentir a brisa a acariciar-me as faces carentes e solitárias. Nunca estive nos lugares onde vivi e por onde passei, nunca pertenci a nada nem ninguém e nunca tive coisa alguma. 
Voei sempre à procura do impossível carregando na bagagem muitos sentimentos intensos, mas especialmente amor. Talvez, por isso, nada tenha... Ah, o amor... Por ele eu teria criado raízes... Mas talvez eu não quisesse ou não pudesse criar raízes... e do meu mais profundo sentir eu o doei àqueles que se fizeram receptivos e aos que não se fizeram também... Mas doei mesmo assim por perceber que precisavam. É fato que muitos o atiram fora, entendem como sendo pedras as pérolas mais caras do meu coração, mas por ser a força motriz do universo, estou convencida de que o amor não mata nem morre, mas reestrutura-se e redime.
Voei sempre, não pertenço a nada nem nada ou ninguém me pertence e, passados esses anos, minhas asas cansaram. Cessei o voo de fuga de mim mesma e parei diante do caminho. Não posso mais fugir nem ter medo de me ver refletir nas águas de minha consciência, ainda que a imagem seja medonha...
Não posso mais voar, e agora, sinto o calor do chão sob meus pés, contemplo o céu e não sei qual caminho seguir, pois das opções de rota que tenho hoje, a realidade e seus reveses me deixam com medo...
Não posso fugir dos anos que pesam, do silêncio que grita, da solidão que afugenta, da dor das pérolas devolvidas como pedras que me machucam e fazem a alma sangrar.
Não sinto pena de mim, mas queria poder consolar a mim mesma, porque me vejo mulher e menina. Queria poder me pegar no colo em que me consolaria dos choros convulsivos a me dar a certeza de que o mesmo amor que faz sangrar também faz curar, porque em suas multifaces, ele é a única salvação.
Eu queria também ser menos egoísta, queria saber amar sem espera, queria que o silêncio não doesse tanto, que o autoperdão fosse suficiente para seguir sem esses espinhos a ferirem tanto os pés que agora pisam o chão. Eu decidi que vou seguir amando ainda que sem respostas, ainda que com desprezo. Porque entre todos os seres dos mundo, há os que merecem nosso amor e os que precisam dele. Ainda que em total silêncio, ciente da impotência de mudar as coisas, totalmente invisível ou incômoda a quem amo, eu vou seguir sentindo, amando e aprendendo, me redimindo, até além... Até poder voar novamente.

2 comentários:

  1. Voar é um ato de amor, você minha querida, vir para onde seu espírito te levar, pois a cada novo voo outro maravilhoso texto é criado e compartilhado conosco. Obrigada pelas belas e sábias palavras!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oh, minha tão querida amiga, muito grata por sia visita e comentário. Você é um dos meus grandes amores, cultivados com todo carinho do meu coração.

      Excluir